quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um ato solitário


Não Ego (2009) Fernando Reis Viana Neto

Uma reflexão sobre a falta de comunicação entre as pessoas e a arte da escrita
Há livros, e textos que são extremamente egoístas, uma terapia individual, uma conversa consigo mesmo, algo que “a pessoa escreve para si própria”. Não é incomum ouvirmos um artista ou escritor dizer que “escreve para si mesmo”, numa tentativa de dizer que se compraz com a escrita e a exerce por que é o que sente que deve fazer. Pouco se importa se sua escrita comunica de fato. E deixa que o leitor ou apreciador de sua obra sinta-se livre para “entendê-la” como bem quiser.
Para desvencilhar-se do peso e do liame das palavras que racionalizam tudo e se fecham contra a intuição, a imaginação ou o prazer de sentir, muitos combatem a “explicação, o entendimento, o racional, o caminho já traçado, a falta de criatividade, de liberdade” que não são privilégios apenas de quem cria, mas de quem entra em contato com a criação. Acredito que se isentam da responsabilidade de comunicar algo. Isentam-se da magia de construir pontes. Trancam-se em seus castelos e contentam-se com admiradores que não conseguem ver que o rei está nu.
No entanto, existe outro fato nessa história: se alguém faz algo só para si mesmo e não se importa com o entendimento do outro, então porque tornar público – publicar? Há ou não há uma incoerência nisso?
Unknown Artists Cairo Egypt
Unknown Artists Cairo Egypt

“O homem procura dominar o mundo em que vive. Uma forma de ele ter esse domínio
Mas o que é domínio?
Domínio: Entre outras definições... “Ser de domínio público: ser sabido de todos; constar em público. Conhecimento”. (Michaelis)
é o conhecimento. Esse é um dos motivos pelos quais ele procura explicar tudo o que existe. A linguagem é uma dessas coisas. Ao procurar explicar a linguagem, o homem está procurando explicar algo que lhe é próprio e que é parte necessária de seu mundo e da sua convivência com os outros seres humanos. Por que falamos? Para que falamos? Como falamos? Por que as línguas são diferentes? O que são as palavras? O que elas produzem? De posse desse saber sobre a linguagem, o homem tenta domesticar seus poderes e trazê-los para si. Será que ele consegue?” (Eni Pulcinelli Orlandi)
Expressar e comunicar são a mesma coisa? Você já parou para pensar se há diferença entre essas duas ações?
Expressar: Exprimir. Exprimir, segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caudas Aulete, é enunciar por meio de gestos ou palavras; manifestar, indicar, dar a conhecer; representar por meio de uma forma artística ou literária (determinada ideia ou pensamento); explicar-se; mostrar-se.
O Grande muro, Daniel Murgel
O Grande muro, Daniel Murgel

Há ai uma tentativa de indicar algo, permitir que esse algo seja conhecido para outras pessoas, representar algo de forma explicada, entendível... E mais ainda, tudo isso em torno de uma determinada ideia ou pensamento, não é algo aleatório, tudo o que é feito é feito a partir de uma intenção ou vontade. Existe uma concordância geral em favor de uma fome ou apetite que impulsiona o ato artístico, no entanto o que impulsiona a “publicação”. O tornar algo público. Saramago, em seu livro “Todos os Nomes”, nos diz que “o apetite, o apetite não depende da vontade de cada um, forma por si mesmo...”. Penso que se escrevo para mim e me basta o meu entendimento, não preciso e não tenho a intenção de publicar. Se quero publicar é porque desejo construir uma ponte, uma porta de entrada em uma casa ou labirinto. Mas para atravessar a ponte é preciso uma entrada. Para entrar na casa é preciso uma porta. Se eu fechar a obra pra mim mesma, se não houver uma porta, não posso acusar o outro de ignorante por não conseguir entrar.
My Castle Zigmunt Zaradkiewicz, Polónia
My Castle Zigmunt Zaradkiewicz, Polónia

Essa casa, essa obra, possui portas para entrada. E lá dentro existem espaços e mais portas. Há casas que se perdem em corredores que parecem infinitos com portas aos montes, nenhuma sinalização, e quem entra pode perder-se ali e talvez não encontrar uma saída que não seja lançar-se pela janela em um ato de desespero, prometendo a si mesmo nunca mais entrar ali. Labirintos... Mas é possível haver uma casa em que se pode visitar, explorar seus espaços, quartos, corredores, e ainda assim encontrar duas ou três de opções de saída, que te fazem feliz por lhe dar a liberdade de sair e voltar quando quiser.

Comunicar: tornar comum; participar, fazer saber; Pôr em contato, em relação, ligar, unir; transmitir, pegar por contágio; dar parte de, fazer tomar parte em; estar em correspondência; aproximar-se; propagar-se... (Caudas Aulete).
Como escritora me preocupo em manter a porta aberta...
O poeta, considerado corumbaense, Manoel de Barros encantou-se com os livros do padre Antônio Vieira: "A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança." Um bom exemplo disso está num verso de Manoel que afirma que "a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso." E quem pode garantir que não é? "Descobri que servia era pra aquilo: Ter orgasmo com as palavras." Dez anos de internato lhe ensinaram a disciplina e os clássicos a rebeldia da escrita.
Hands, Escher
Hands, Escher

"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento." (Fonte)
O poeta desconstrutor. Descontruiu a palavra tanta vezes, percorreu séculos atrás da primeira “careta” ou aparição sobrenatural de uma determinada palavra, pois voltando ao início era possível começar tudo novamente e reutilizar a palavra e observar se ela caminharia para o mesmo lugar.
Posso tomar sopa. Posso tomar carne? Posso tomar o corpo de alguém? Posso tomar gosto pela vida?
O verbo ainda é “tomar”...
“Uma vez atribuído um nome, ele passa a ter um valor na língua. Por isso, quando ouvidas, as palavras são logo associadas a seus objetos”, nos diz Eni no livro O que é linguística?
Desconstruir uma palavra, buscar sua origem é um trabalho para desassociar que vai limpando a palavra das imagens às quais foram associadas. Para uma boa comunicação utilizando-se a palavra é preciso permitir a comunicação, a participação do outro. Muitos escritores criativos buscam novas formas de se expressar por meio da escrita, e alguns conseguem isso mantendo a ponte firme. No entanto, outros caem na terapia individual, no monólogo, em um ato solitário.

Há o preguiçoso, o cientista da palavra, o descobridor e o ansioso. Nem tanto estudo e pompa que lhe cegue a vista para o orvalho, para o raro instante em que uma ave pousa em seu ombro, mas nem tão solto que ninguém te alcance...
Assim funciona a comunicação, desde a mais simples conversa até a arte.
"Quadro nenhum está acabado, disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além de outro quadro
que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras."
(João Cabral de Melo Neto, "A Lição de Pintura")
The unexpected answer, René Magritte
The unexpected answer, René Magritte

Lygia Canelas
Bibliotecária e escritora, autora de "Vestígios".

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